APRESENTAÇÃO OBJETIVOS PÚBLICO-ALVO PROGRAMAÇÃO PESQUISADORES TRABALHOS VÍDEOS ORGANIZAÇÃO
apresentação
Em 2014, o golpe de 1964
completou 50 anos. Se não há motivo para comemorar, afinal tratou-se de “um
infausto acontecimento, pois implicou efeitos perversos e nefastos ao processo
de desenvolvimento econômico, político e cultural do Brasil”,[1] também não há justificativa para
menosprezá-lo como marco histórico. Naquele contexto, o golpe deu início a uma
ditadura que durou mais de duas décadas e cujas práticas são sentidas ainda
hoje. No entanto, 50 anos depois, o evento (e tudo que ele representa) vem se
transformando numa oportunidade de examinar o fenômeno do autoritarismo e suas
práticas, difundir as pesquisas sobre o regime militar, também expandi-las
através de novas abordagens e fontes, - compartilhando as com a sociedade
brasileira que, durante um longo período, esteve apartada dos espaços de
discussão acerca dos rumos do país ou alijada do processo de construção
democrática no Brasil.
A partir desses objetivos gerais, organizamos o I Colóquio Nacional de Estudos do Autoritarismo que, na primeira edição, propõe discutir aspectos da censura e da repressão às artes e à imprensa durante o regime militar no Brasil e suas reminiscências nas décadas seguintes e, assim, articular o fenômeno do autoritarismo e suas práticas às relações entre memória e história e à constituição da resistência cultural.
O termo autoritarismo emprega-se especificamente em três situações: como 1) sistema político, 2) disposição psicológica e 3) ideologia autoritária. Este evento acadêmico que, em geral, se volta para os estudos do autoritarismo está relacionado à primeira instância que também pode ser definida como regimes autoritários porque “privilegiam a autoridade governamental e diminuem de forma mais ou menos radical o consenso, concentrando o poder político nas mãos de uma só pessoa ou de um só órgão e colocando em posição secundária as instituições representativas”, nas quais “a oposição e a autonomia dos subsistemas políticos são reduzidas à expressão mínima e as instituições destinadas a representar a autoridade de baixo para cima ou são aniquiladas ou substancialmente esvaziadas”.[2]
Estas três instâncias (sistema político, disposição psicológica ou ideologia autoritária) não apresentam necessariamente sincronia entre si, embora possa existir congruência entre elas, daí surge a necessidade de se investigar “em que grau e com que frequência os três níveis de Autoritarismo se acham juntos ou separados nas diversas situações sociais”, “quesito cuja resposta não pode ser prejudicada, na partida, pelas definições, mas deve ser pacientemente determinada através da investigação empírica”.[3]
Sendo, portanto, o termo autoritarismo uma categoria ampla que pode ser associada tanto a regimes antidemocráticos quanto a personalidades autoritárias e exemplos deles são vistos em momentos diferentes da história mundial, cabe-nos, então, delimitar precisamente nossa preocupação com a manifestação contemporânea dele nas Américas, especificamente o caso brasileiro, mais conhecido como ditadura militar.
Embora existam inúmeras tipologias para abordá-la como, por exemplo, ditadura civil, militar e até empresarial, acenando para a participação de grupos de natureza diversa tanto na concretude do golpe quanto na consolidação do regime, partiremos momentaneamente da definição do sociólogo Juan Linz que definiu os casos brasileiro e argentino e também o espanhol de Primo de Rivera e o português de Salazar como regimes autoritários de natureza burocrático-militares que, em linhas gerais, representa “uma coalização chefiada por oficiais e burocratas e por um baixo grau de participação política”, na qual se “falta uma ideologia e um partido de massa; existe frequentemente um partido único, que tende a restringir a participação; às vezes existe pluralismo político, mas sem disputa eleitoral livre”.[4]
Partindo dessas definições gerais em torno do fenômeno do autoritarismo e a versão brasileira dele, podemos tomar a produção bibliográfica no contexto imediato ao golpe de 1964 e no período pós-regime militar como objeto de estudo, analisando os temas mais recorrentes em determinados momentos bem como o impacto dessa discussão no encaminhamento das pesquisas.
Nos primeiros anos do regime militar, de 1964 a 1968, não se sabia ao certo o que estava por vir e não haviam sido fechados os espaços de atuação política, ainda que neles não fosse mais tolerada a interação interclasses, como outrora vinha sendo efetivada no plano da cultura por instituições como o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), a União Nacional de Estudantes (UNE), o Centro Popular de Cultura (CPC), o Movimento de Cultura Popular (MCP), entre outros.
Paulatinamente, o regime militar expandiu suas práticas repressivas, utilizando-se da censura e repressão para coibir manifestações contestatórias da intelectualidade engajada que outrora buscaram a interação com as classes populares e outros extratos da sociedade e, naquele momento, encontravam-se restritos ao contato com as classes médias. Artistas e intelectuais, por sua vez, não se mantiveram passivos às decisões impostas de “cima para baixo” e se uniram em torno do projeto de consolidação da chamada resistência cultural.
Apesar das divergências vivenciadas por artistas e intelectuais no que concerne à construção de uma unidade em torno das reivindicações comuns, houve uma articulação efetiva deles no contexto pós-golpe e pré-AI-5, isto é, entre 1964 e 1968. As discussões anteriormente restritas à produção individual ou de grupos ganharam dimensões mais amplas e coordenadas durante o regime militar, o que podiam transitar de questões pontuais como a liberação de obras e a libertação de artistas até problemas mais complexos como a extinção da censura e um programa de subvenções.
A construção de uma unidade a partir do enfrentamento de um “inimigo comum”, não extinguiu os impasses teórico-políticos entre diferentes grupos. Isto porque a luta da intelectualidade contra o regime militar nunca se definiu por uma convivência pacífica entre integrantes da oposição. Como assinalou o editorial do periódico Arte em Revista, num volume especial sobre teatro engajado, é necessário “relativizar a possível coerência que muitos querem enxergar numa atividade regida pela economia de mercado, pelos modismos artísticos, pelo jogo das influências externas, como as relações com o Estado, a censura, etc.”[5] De qualquer forma, a atuação dos mecanismos de controle e do aparelho repressivo estimularam a convergência de opiniões divergentes em torno de reivindicações comuns.[6]
Após manifestações culturais de grande impacto no espaço público como o movimento “Pela cultura, contra a censura” e a greve dos teatros, o aumento da repressão aos movimentos sociais e as tentativas de unificação das reivindicações da oposição,[7] percebemos que as manifestações coletivas começaram a migrar para a esfera jurídica, dando lugar à individualização da resistência cultural, a qual passou a ser chamada desobediência civil, transformando assim os projetos coletivos de luta organizada à interlocução solitária no âmbito da Justiça.[8]
Assim, durante pelo menos 10 anos, mais sintomaticamente entre 1968 e 1974, o regime militar, através de uma série de restrições, não só ignorou as principais demandas de artistas e intelectuais, sendo a liberdade de expressão a mais importante delas, como também os impediu de se comunicar com a sociedade brasileira, impondo-lhes a censura de peças teatrais, filmes, revistas, livros, jornais, publicidade, programas de rádio e televisão e também sujeitando-os a mecanismos de repressão como a perseguição, prisão, tortura e até morte de artistas e intelectuais.
Como se vê, este foi um período conturbado para artistas e intelectuais que não mais nutriam expectativas de unidade como outrora, dividindo-se cada vez mais. Diante do processo repressivo deixaram de lutar por questões mais amplas para reivindicar questões pontuais, transferiram a luta contra a censura das manifestações públicas para a esfera jurídica e, mais tarde, para o campo econômico, interiorizavam práticas de autocensura no processo de criação e também promoviam alianças táticas para enfrentar este estado de coisas.[9]
Para se entender este embate de forças durante o regime militar (1964-1985), especificamente a partir de 1968 e durante a década de 1970, devemos ir além das interpretações consolidadas que propuseram dicotomias como resistência x cooptação como ocorreu com grande parte da literatura dos anos 1980 que analisou a produção artística e intelectual produzida durante os anos de censura e repressão; mais que isto, esta se insere num processo complexo e contraditório de projeção da cultura na vida nacional com o fechamento dos espaços tradicionais de atuação política, progressivamente a partir de 1968, que tinha como elemento catalisador as políticas culturais em seus múltiplos matizes como as de caráter proativa realizadas pelo Serviço Nacional de Teatro (SNT), a Empresa Brasileira de Filmes Sociedade Anônima (Embrafilme), entre outros, e as de natureza repressiva executadas pela Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP), pelos Serviços de Censura de Diversões Públicas (SCDPs) e pela “supercensura”.[10]
Somente no contexto de abertura, o governo Geisel tentou uma aproximação a esses grupos permitindo-lhes expressar anseios reprimidos por longo tempo e convidando-os a participar da elaboração de políticas no âmbito do governo. Claro que isto não foi recebido - bem e com unanimidade - por artistas e intelectuais, alguns consideraram a iniciativa uma oportunidade de subverter as estruturas por dentro ou, pelo menos, ver atendidas as reivindicações mais pontuais, outros viram nisto mais uma forma de cooptação adotada pelo governo militar e se colocaram contra ele e contra todos que, após longos anos de repressão e censura, aceitaram participar de planos do governo na área da cultura. Desse impasse, advém a rivalidade entre os artistas e intelectuais comunistas, mais abertos à interlocução com o governo da abertura, e o movimento da contracultura, contrário a qualquer tipo de negociação.
Na década de 1980, mais especificamente no pós-1985, artistas e intelectuais buscaram entender o que havia acontecido nos 21 anos de regime militar e isto refletiu diretamente na produção bibliográfica e também nos debates públicos que se concentraram em apontar culpados pela passividade da oposição diante do golpe de 1964; não poupando críticas ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) e tudo que esteve direta ou indiretamente relacionado a ele, já mencionamos o ISEB, o CPC e o MCP, entre outros.
De meados dos anos 1980 até o fim do século, a ditadura enfim acabara, mas as feridas continuaram abertas... e os arquivos fechados. Durante 30 anos pelo menos, a construção historiográfica acerca do regime militar pautou-se pelas apropriações da memória e a propensão desta de se confundir com a história. De um lado, militares e aqueles que apoiaram o golpe e a ditadura (a alta cúpula da Igreja Católica, as associações representativas das classes dominantes, os meios de comunicação de grande porte, os partidos e políticos de caráter conservador) contavam a versão deles da história através de restrições plenas ao acesso a arquivos e mecanismos sofisticados de manipulação dos fatos, um dos mais significativos e até hoje confundido refere-se à denominação do movimento golpista como "revolução" ou "redentora".[11] De outro, grupos de oposição, nem sempre articulados entre si, colocavam-se como “alvos” do sistema cuja perseguição ostensiva dos agentes da ditadura justificou, em alguns casos, a adesão à luta armada (rural ou urbana). Em ambos os casos, porém de maneiras distintas, consideramos oportuna a observação de Jacques Le Goff acerca da memória coletiva, na qual se tornar “senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas”[12] e isto aconteceu também aqui, durante e depois do regime militar, considerando obviamente as diferenças e divergências entre eles e seu poder de inserção e impacto social.
A memória, no entanto, não é algo concreto e definido, cuja produção e acabamento se realizaram no passado e cumpre transportá-los para o presente bem como preservá-la dos riscos de desgaste através da restauração integral dela nem se resume a um “pacote de recordações”, também já previsto e acabado. Ao contrário, “é um processo permanente de construção e reconstrução”.[13] Noutras palavras e na maioria das vezes,
lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e ideias de hoje, as experiências do passado. A memória não é sonho, é trabalho. Se assim é, deve-se duvidar da sobrevivência do passado, “tal como foi”, e que se daria no inconsciente de cada sujeito. A lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão, agora, à nossa disposição, no conjunto de representações que povoam nossa consciência atual. Por mais nítida que nos pareça a lembrança de um fato antigo, ela não é a mesma imagem que experimentamos na infância, porque nós não somos os mesmos de então e porque nossa percepção alterou-se e, com ela, nossas ideias, nossos juízos de realidade e de valor. O simples fato de lembrar o passado, no presente, exclui a identidade entre as imagens de um e de outro, e propõe a sua diferença em termos de ponto de vista.[14]
Sublinha-se, portanto, que memória e história não são termos convergentes, ainda que possam ser considerados fenômenos complementares. Enquanto a memória, filha do presente e tendo como objeto a mudança,[15] “é formação de imagem necessária para os processos de constituição e reforço da identidade individual, coletiva e nacional”; a história, operação cognitiva, tem como referencial o passado e “é a forma intelectual de conhecimento”.[16] Em síntese: a História não é o “duplo científico da memória” a qual, por sua vez, precisa ser tratada como objeto da história.[17]
Nessas disputas pela consagração da memória coletiva, as restrições de acesso aos documentos de época favoreceram a construção de memórias a partir de questões do presente, sobretudo do primeiro grupo que exercia plenos poderes e controle dos arquivos públicos, inclusive dos critérios de descarte deles, orientados não por técnicas arquivísticas e sim por demandas políticas. Daí resulta a importância de pesquisadores de áreas como o jornalismo, a história, a sociologia, a antropologia e a ciência política que tomam a memória coletiva como objeto de pesquisa e transformam a luta pela democratização da memória social numa das prioridades das pesquisas em Ciências Humanas e Humanidades e, assim, trabalham para que “a memória coletiva sirva para a libertação e não para a servidão dos homens”.[18]
A produção intelectual e bibliográfica em torno daquele contexto histórico começou a sofrer alterações consideráveis na virada do século quando a sociedade brasileira já se encontrava mais preparada e sem as amarras do passado para discutir nosso passado recente, os arquivos públicos estavam sendo paulatinamente abertos e, através deles, os pesquisadores brasileiros (e não somente os brazilianistas) iniciaram um amplo processo de revisão historiográfica que não só desconstruiu teses cristalizadas no imaginário social como também apresentou novas abordagens de temas tratados anteriormente pela historiografia oficial ou pela bibliografia memorialística.
Nesse amplo movimento de renovação historiográfica, que vem se consolidando desde a abertura de arquivos nacionais e internacionais e do acesso a eles por pesquisadores brasileiros com formação acadêmica, inscreve-se a maioria das palestras do I Colóquio Nacional de Estudos do Autoritarismo e a estes reservamos o horário das tardes e noites dos dias 23, 24, 25 e 26 de setembro. Não desconsideramos, no entanto, a importância dos protagonistas daquele contexto histórico e a estes destinamos um horário especial nos dias 24 e 25 de setembro.
Organizado desta maneira, o evento procura contemplar as pesquisas mais afinadas atualmente no âmbito local, regional e nacional e também as memórias dos envolvidos nas atividades de resistência na cidade e região. Assim, ao reunir num só evento as principais pesquisas acadêmicas sobre o assunto e também a experiência de vida pelos protagonistas da época, pretendemos expandir o diálogo com as múltiplas perspectivas em voga; não mais como pontos de vista em conflito devido às diferenças político-ideológicas ou da batalha das memórias como mencionamos anteriormente, mas como versões da história complementares que transitam por vias diferenciadas para materializar-se sem, no entanto, abordá-las a partir de preceitos valorativos ou hierarquizá-las segundo a legitimação das narrativas.
Miliandre Garcia (coordenadora)
[1] TOLEDO, Caio. Quase 50 anos do golpe de 1964: nada a comemorar. Consultado na Internet em 6 jan. 2014: http://blogdaboitempo.com.br/2013/03/30/quase-50-anos-do-golpe-de-1964-nada-a-comemorar/
[2] BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política – de A a J. 5. Ed. São Paulo: Imprensa Oficial, 2004. p. 94.
[3] Idem, p. 95.
[4] Apud Idem, p. 102.
[5] EDITORIAL. Arte em Revista, São Paulo, a. 3, n. 6, p. 18-25, out. 1981.
[6] A propósito, consultar: GARCIA, Miliandre. “Contra a censura, pela cultura”: a construção da unidade teatral e os atos de resistência cultural. ArtCultura, Uberlândia, n. 25, jul.-dez. 2012.
[7] Idem.
[8] Um exemplo disto foi analisado em: GARCIA, Miliandre. “A luta agora é na Justiça”: o processo censório de Calabar. PolHis – Boletín Bibliográfico Electrónico del Programa Buenos Aires de Historia Política, Buenos Aires, a. 5, n. 9, p. 267-282, primeiro semestre 2012.
[9] Sobre esta questão ver NAPOLITANO, Marcos. Coração civil: arte, resistência e lutas culturais durante o regime militar brasileiro (1964-1980). São Paulo, 2011. Tese (Livre-docência em História) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.
[10] NAPOLITANO, Marcos. “Vencer Satã só com orações”: políticas culturais e cultura de oposição no Brasil dos anos 1970. In: ROLLEMBERG, Denise; QUADRAT, Samantha Viz (orgs.) A construção social dos regimes autoritários: legitimidade, consenso e consentimento no século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. p. 145 e 150.
[11] TOLEDO, op. cit.
[12] LE GOFF, Jacques. História e memória. 4. ed. Campinas: UNICAMP, 1996. p. 426.
[13] MENESES, Ulpiano T. Bezerra. A história, cativa da memória? Para um mapeamento da memória no campo das Ciências Sociais. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n. 34, p. 9-23, 1992. p. 10.
[14] BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 3. ed. São Paulo: Cia das Letras, 1994. p. 55.
[15] MENESES, op. cit., p. 14.
[16] Idem, p. 22.
[17] Idem, p. 23.
[18] LE GOFF, op. cit., p. 477.
A partir desses objetivos gerais, organizamos o I Colóquio Nacional de Estudos do Autoritarismo que, na primeira edição, propõe discutir aspectos da censura e da repressão às artes e à imprensa durante o regime militar no Brasil e suas reminiscências nas décadas seguintes e, assim, articular o fenômeno do autoritarismo e suas práticas às relações entre memória e história e à constituição da resistência cultural.
O termo autoritarismo emprega-se especificamente em três situações: como 1) sistema político, 2) disposição psicológica e 3) ideologia autoritária. Este evento acadêmico que, em geral, se volta para os estudos do autoritarismo está relacionado à primeira instância que também pode ser definida como regimes autoritários porque “privilegiam a autoridade governamental e diminuem de forma mais ou menos radical o consenso, concentrando o poder político nas mãos de uma só pessoa ou de um só órgão e colocando em posição secundária as instituições representativas”, nas quais “a oposição e a autonomia dos subsistemas políticos são reduzidas à expressão mínima e as instituições destinadas a representar a autoridade de baixo para cima ou são aniquiladas ou substancialmente esvaziadas”.[2]
Estas três instâncias (sistema político, disposição psicológica ou ideologia autoritária) não apresentam necessariamente sincronia entre si, embora possa existir congruência entre elas, daí surge a necessidade de se investigar “em que grau e com que frequência os três níveis de Autoritarismo se acham juntos ou separados nas diversas situações sociais”, “quesito cuja resposta não pode ser prejudicada, na partida, pelas definições, mas deve ser pacientemente determinada através da investigação empírica”.[3]
Sendo, portanto, o termo autoritarismo uma categoria ampla que pode ser associada tanto a regimes antidemocráticos quanto a personalidades autoritárias e exemplos deles são vistos em momentos diferentes da história mundial, cabe-nos, então, delimitar precisamente nossa preocupação com a manifestação contemporânea dele nas Américas, especificamente o caso brasileiro, mais conhecido como ditadura militar.
Embora existam inúmeras tipologias para abordá-la como, por exemplo, ditadura civil, militar e até empresarial, acenando para a participação de grupos de natureza diversa tanto na concretude do golpe quanto na consolidação do regime, partiremos momentaneamente da definição do sociólogo Juan Linz que definiu os casos brasileiro e argentino e também o espanhol de Primo de Rivera e o português de Salazar como regimes autoritários de natureza burocrático-militares que, em linhas gerais, representa “uma coalização chefiada por oficiais e burocratas e por um baixo grau de participação política”, na qual se “falta uma ideologia e um partido de massa; existe frequentemente um partido único, que tende a restringir a participação; às vezes existe pluralismo político, mas sem disputa eleitoral livre”.[4]
Partindo dessas definições gerais em torno do fenômeno do autoritarismo e a versão brasileira dele, podemos tomar a produção bibliográfica no contexto imediato ao golpe de 1964 e no período pós-regime militar como objeto de estudo, analisando os temas mais recorrentes em determinados momentos bem como o impacto dessa discussão no encaminhamento das pesquisas.
Nos primeiros anos do regime militar, de 1964 a 1968, não se sabia ao certo o que estava por vir e não haviam sido fechados os espaços de atuação política, ainda que neles não fosse mais tolerada a interação interclasses, como outrora vinha sendo efetivada no plano da cultura por instituições como o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), a União Nacional de Estudantes (UNE), o Centro Popular de Cultura (CPC), o Movimento de Cultura Popular (MCP), entre outros.
Paulatinamente, o regime militar expandiu suas práticas repressivas, utilizando-se da censura e repressão para coibir manifestações contestatórias da intelectualidade engajada que outrora buscaram a interação com as classes populares e outros extratos da sociedade e, naquele momento, encontravam-se restritos ao contato com as classes médias. Artistas e intelectuais, por sua vez, não se mantiveram passivos às decisões impostas de “cima para baixo” e se uniram em torno do projeto de consolidação da chamada resistência cultural.
Apesar das divergências vivenciadas por artistas e intelectuais no que concerne à construção de uma unidade em torno das reivindicações comuns, houve uma articulação efetiva deles no contexto pós-golpe e pré-AI-5, isto é, entre 1964 e 1968. As discussões anteriormente restritas à produção individual ou de grupos ganharam dimensões mais amplas e coordenadas durante o regime militar, o que podiam transitar de questões pontuais como a liberação de obras e a libertação de artistas até problemas mais complexos como a extinção da censura e um programa de subvenções.
A construção de uma unidade a partir do enfrentamento de um “inimigo comum”, não extinguiu os impasses teórico-políticos entre diferentes grupos. Isto porque a luta da intelectualidade contra o regime militar nunca se definiu por uma convivência pacífica entre integrantes da oposição. Como assinalou o editorial do periódico Arte em Revista, num volume especial sobre teatro engajado, é necessário “relativizar a possível coerência que muitos querem enxergar numa atividade regida pela economia de mercado, pelos modismos artísticos, pelo jogo das influências externas, como as relações com o Estado, a censura, etc.”[5] De qualquer forma, a atuação dos mecanismos de controle e do aparelho repressivo estimularam a convergência de opiniões divergentes em torno de reivindicações comuns.[6]
Após manifestações culturais de grande impacto no espaço público como o movimento “Pela cultura, contra a censura” e a greve dos teatros, o aumento da repressão aos movimentos sociais e as tentativas de unificação das reivindicações da oposição,[7] percebemos que as manifestações coletivas começaram a migrar para a esfera jurídica, dando lugar à individualização da resistência cultural, a qual passou a ser chamada desobediência civil, transformando assim os projetos coletivos de luta organizada à interlocução solitária no âmbito da Justiça.[8]
Assim, durante pelo menos 10 anos, mais sintomaticamente entre 1968 e 1974, o regime militar, através de uma série de restrições, não só ignorou as principais demandas de artistas e intelectuais, sendo a liberdade de expressão a mais importante delas, como também os impediu de se comunicar com a sociedade brasileira, impondo-lhes a censura de peças teatrais, filmes, revistas, livros, jornais, publicidade, programas de rádio e televisão e também sujeitando-os a mecanismos de repressão como a perseguição, prisão, tortura e até morte de artistas e intelectuais.
Como se vê, este foi um período conturbado para artistas e intelectuais que não mais nutriam expectativas de unidade como outrora, dividindo-se cada vez mais. Diante do processo repressivo deixaram de lutar por questões mais amplas para reivindicar questões pontuais, transferiram a luta contra a censura das manifestações públicas para a esfera jurídica e, mais tarde, para o campo econômico, interiorizavam práticas de autocensura no processo de criação e também promoviam alianças táticas para enfrentar este estado de coisas.[9]
Para se entender este embate de forças durante o regime militar (1964-1985), especificamente a partir de 1968 e durante a década de 1970, devemos ir além das interpretações consolidadas que propuseram dicotomias como resistência x cooptação como ocorreu com grande parte da literatura dos anos 1980 que analisou a produção artística e intelectual produzida durante os anos de censura e repressão; mais que isto, esta se insere num processo complexo e contraditório de projeção da cultura na vida nacional com o fechamento dos espaços tradicionais de atuação política, progressivamente a partir de 1968, que tinha como elemento catalisador as políticas culturais em seus múltiplos matizes como as de caráter proativa realizadas pelo Serviço Nacional de Teatro (SNT), a Empresa Brasileira de Filmes Sociedade Anônima (Embrafilme), entre outros, e as de natureza repressiva executadas pela Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP), pelos Serviços de Censura de Diversões Públicas (SCDPs) e pela “supercensura”.[10]
Somente no contexto de abertura, o governo Geisel tentou uma aproximação a esses grupos permitindo-lhes expressar anseios reprimidos por longo tempo e convidando-os a participar da elaboração de políticas no âmbito do governo. Claro que isto não foi recebido - bem e com unanimidade - por artistas e intelectuais, alguns consideraram a iniciativa uma oportunidade de subverter as estruturas por dentro ou, pelo menos, ver atendidas as reivindicações mais pontuais, outros viram nisto mais uma forma de cooptação adotada pelo governo militar e se colocaram contra ele e contra todos que, após longos anos de repressão e censura, aceitaram participar de planos do governo na área da cultura. Desse impasse, advém a rivalidade entre os artistas e intelectuais comunistas, mais abertos à interlocução com o governo da abertura, e o movimento da contracultura, contrário a qualquer tipo de negociação.
Na década de 1980, mais especificamente no pós-1985, artistas e intelectuais buscaram entender o que havia acontecido nos 21 anos de regime militar e isto refletiu diretamente na produção bibliográfica e também nos debates públicos que se concentraram em apontar culpados pela passividade da oposição diante do golpe de 1964; não poupando críticas ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) e tudo que esteve direta ou indiretamente relacionado a ele, já mencionamos o ISEB, o CPC e o MCP, entre outros.
De meados dos anos 1980 até o fim do século, a ditadura enfim acabara, mas as feridas continuaram abertas... e os arquivos fechados. Durante 30 anos pelo menos, a construção historiográfica acerca do regime militar pautou-se pelas apropriações da memória e a propensão desta de se confundir com a história. De um lado, militares e aqueles que apoiaram o golpe e a ditadura (a alta cúpula da Igreja Católica, as associações representativas das classes dominantes, os meios de comunicação de grande porte, os partidos e políticos de caráter conservador) contavam a versão deles da história através de restrições plenas ao acesso a arquivos e mecanismos sofisticados de manipulação dos fatos, um dos mais significativos e até hoje confundido refere-se à denominação do movimento golpista como "revolução" ou "redentora".[11] De outro, grupos de oposição, nem sempre articulados entre si, colocavam-se como “alvos” do sistema cuja perseguição ostensiva dos agentes da ditadura justificou, em alguns casos, a adesão à luta armada (rural ou urbana). Em ambos os casos, porém de maneiras distintas, consideramos oportuna a observação de Jacques Le Goff acerca da memória coletiva, na qual se tornar “senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas”[12] e isto aconteceu também aqui, durante e depois do regime militar, considerando obviamente as diferenças e divergências entre eles e seu poder de inserção e impacto social.
A memória, no entanto, não é algo concreto e definido, cuja produção e acabamento se realizaram no passado e cumpre transportá-los para o presente bem como preservá-la dos riscos de desgaste através da restauração integral dela nem se resume a um “pacote de recordações”, também já previsto e acabado. Ao contrário, “é um processo permanente de construção e reconstrução”.[13] Noutras palavras e na maioria das vezes,
lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e ideias de hoje, as experiências do passado. A memória não é sonho, é trabalho. Se assim é, deve-se duvidar da sobrevivência do passado, “tal como foi”, e que se daria no inconsciente de cada sujeito. A lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão, agora, à nossa disposição, no conjunto de representações que povoam nossa consciência atual. Por mais nítida que nos pareça a lembrança de um fato antigo, ela não é a mesma imagem que experimentamos na infância, porque nós não somos os mesmos de então e porque nossa percepção alterou-se e, com ela, nossas ideias, nossos juízos de realidade e de valor. O simples fato de lembrar o passado, no presente, exclui a identidade entre as imagens de um e de outro, e propõe a sua diferença em termos de ponto de vista.[14]
Sublinha-se, portanto, que memória e história não são termos convergentes, ainda que possam ser considerados fenômenos complementares. Enquanto a memória, filha do presente e tendo como objeto a mudança,[15] “é formação de imagem necessária para os processos de constituição e reforço da identidade individual, coletiva e nacional”; a história, operação cognitiva, tem como referencial o passado e “é a forma intelectual de conhecimento”.[16] Em síntese: a História não é o “duplo científico da memória” a qual, por sua vez, precisa ser tratada como objeto da história.[17]
Nessas disputas pela consagração da memória coletiva, as restrições de acesso aos documentos de época favoreceram a construção de memórias a partir de questões do presente, sobretudo do primeiro grupo que exercia plenos poderes e controle dos arquivos públicos, inclusive dos critérios de descarte deles, orientados não por técnicas arquivísticas e sim por demandas políticas. Daí resulta a importância de pesquisadores de áreas como o jornalismo, a história, a sociologia, a antropologia e a ciência política que tomam a memória coletiva como objeto de pesquisa e transformam a luta pela democratização da memória social numa das prioridades das pesquisas em Ciências Humanas e Humanidades e, assim, trabalham para que “a memória coletiva sirva para a libertação e não para a servidão dos homens”.[18]
A produção intelectual e bibliográfica em torno daquele contexto histórico começou a sofrer alterações consideráveis na virada do século quando a sociedade brasileira já se encontrava mais preparada e sem as amarras do passado para discutir nosso passado recente, os arquivos públicos estavam sendo paulatinamente abertos e, através deles, os pesquisadores brasileiros (e não somente os brazilianistas) iniciaram um amplo processo de revisão historiográfica que não só desconstruiu teses cristalizadas no imaginário social como também apresentou novas abordagens de temas tratados anteriormente pela historiografia oficial ou pela bibliografia memorialística.
Nesse amplo movimento de renovação historiográfica, que vem se consolidando desde a abertura de arquivos nacionais e internacionais e do acesso a eles por pesquisadores brasileiros com formação acadêmica, inscreve-se a maioria das palestras do I Colóquio Nacional de Estudos do Autoritarismo e a estes reservamos o horário das tardes e noites dos dias 23, 24, 25 e 26 de setembro. Não desconsideramos, no entanto, a importância dos protagonistas daquele contexto histórico e a estes destinamos um horário especial nos dias 24 e 25 de setembro.
Organizado desta maneira, o evento procura contemplar as pesquisas mais afinadas atualmente no âmbito local, regional e nacional e também as memórias dos envolvidos nas atividades de resistência na cidade e região. Assim, ao reunir num só evento as principais pesquisas acadêmicas sobre o assunto e também a experiência de vida pelos protagonistas da época, pretendemos expandir o diálogo com as múltiplas perspectivas em voga; não mais como pontos de vista em conflito devido às diferenças político-ideológicas ou da batalha das memórias como mencionamos anteriormente, mas como versões da história complementares que transitam por vias diferenciadas para materializar-se sem, no entanto, abordá-las a partir de preceitos valorativos ou hierarquizá-las segundo a legitimação das narrativas.
Miliandre Garcia (coordenadora)
[1] TOLEDO, Caio. Quase 50 anos do golpe de 1964: nada a comemorar. Consultado na Internet em 6 jan. 2014: http://blogdaboitempo.com.br/2013/03/30/quase-50-anos-do-golpe-de-1964-nada-a-comemorar/
[2] BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política – de A a J. 5. Ed. São Paulo: Imprensa Oficial, 2004. p. 94.
[3] Idem, p. 95.
[4] Apud Idem, p. 102.
[5] EDITORIAL. Arte em Revista, São Paulo, a. 3, n. 6, p. 18-25, out. 1981.
[6] A propósito, consultar: GARCIA, Miliandre. “Contra a censura, pela cultura”: a construção da unidade teatral e os atos de resistência cultural. ArtCultura, Uberlândia, n. 25, jul.-dez. 2012.
[7] Idem.
[8] Um exemplo disto foi analisado em: GARCIA, Miliandre. “A luta agora é na Justiça”: o processo censório de Calabar. PolHis – Boletín Bibliográfico Electrónico del Programa Buenos Aires de Historia Política, Buenos Aires, a. 5, n. 9, p. 267-282, primeiro semestre 2012.
[9] Sobre esta questão ver NAPOLITANO, Marcos. Coração civil: arte, resistência e lutas culturais durante o regime militar brasileiro (1964-1980). São Paulo, 2011. Tese (Livre-docência em História) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.
[10] NAPOLITANO, Marcos. “Vencer Satã só com orações”: políticas culturais e cultura de oposição no Brasil dos anos 1970. In: ROLLEMBERG, Denise; QUADRAT, Samantha Viz (orgs.) A construção social dos regimes autoritários: legitimidade, consenso e consentimento no século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. p. 145 e 150.
[11] TOLEDO, op. cit.
[12] LE GOFF, Jacques. História e memória. 4. ed. Campinas: UNICAMP, 1996. p. 426.
[13] MENESES, Ulpiano T. Bezerra. A história, cativa da memória? Para um mapeamento da memória no campo das Ciências Sociais. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n. 34, p. 9-23, 1992. p. 10.
[14] BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 3. ed. São Paulo: Cia das Letras, 1994. p. 55.
[15] MENESES, op. cit., p. 14.
[16] Idem, p. 22.
[17] Idem, p. 23.
[18] LE GOFF, op. cit., p. 477.